segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Rosas para o Poeta

ROSAS PARA O POETA - Hernâni Donato

Às quintas-feiras o poeta recebe uma rosa.

Desenvolveu grande apêgo pela flor. Ela lhe trouxe de volta a poesia. Forma
nova de poesia. A sua geração poética está extinta. Os suplementos
literários não se ocupam mais com ele. Os jovens deixaram de criticá-lo ou
de louvá-lo. É um poeta esquecido.

Mas às quintas-feiras a admiradora anônima manda-lhe dizer que ainda ama a
sua poesia. Por conseguinte, ama-o.

Pois vinha também um cartão: "Ao Poeta". Com pê maiúsculo. Este requinte de
mulher inteligente aumentava o gosto da glória reencontrada. Se uma só
palavra fosse acrescentada, estaria rompido, diminuido o excitante
mistério.

"É uma assinatura!" - chegou a pensar. "Ela foi a um florista, fez a
encomenda, mandou preencher cartões. Para um certo número de rosas e de
semanas". Reagiu. A técnica desimportava. Às quintas, a rosa repetia-lhe
que era poeta e homem capaz de emocionar um coração de mulher.

A primeira viera no último aniversário. Alegrara-se. "Não morri para essa
criatura. Obrigado, querida desconhecida". Com um susto agradável, na
semana seguinte e nas outras, a rosa compareceu. Terminou por situar nela o
acontecimento maior da semana. Mudou. Ajustou-se a viver nas quintas. E
vegetar nos outros dias, à espera da quinta-feira.

Não tentou identificar a remetente. Idealizá-la tornou-se um gozo a mais.
Era a mesma e era outra, a cada rosa. Nem sempre linda. Não necessariamente
jovem. Mas espiritual, inteligente, alegre. Diferente. Quando colegial, ela
teria aprendido o abecê do amor na cadência dos seus versos. Lembrar-se-ia
do poeta agora, já madura. Memórias avivadas, agradecia-lhe com rosas e
insistência. Na semana seguinte, via-a em angústia, transitando pela vida à
procura de amor. Voltando-se para o poeta que lho prometera, havia anos, na
comunhão dos versos. Cobrava-lhe a promessa. Falava-lhe de amor às
quintas-feiras. Era um modo sutil de amarem-se.

"Se em vez da rosa, vier ela mesma?" - assustou-se. Recusou a hipótese. Não
a queria ver, tocar, ouvir. Na verdade, precisava de que ela se conservasse
desconhecida. Oculta, era multidão. E espiritualidade.

De materialidade bastava-lhe o dia-a-dia, o vazio da meia idade, a miséria
da aposentadoria, a ausência da roda literária, os cuidados caseiros da
esposa envelhecida e enfiada nos cuidados da cozinha, dos filhos, do
quintal.

Não falava a ninguém da flor. Deixava-a no escritório. Na rua, no ônibus,
fixava as mulheres como se cada qual disfarçasse a identidade de mulher da
rosa. Desejaria agradecer a todas. Supunha estabelecer um diálogo mudo e
súplice: "Nós dois sabemos. Obrigado, querida. Obrigado pela rosa."

E chegava. A cunhada atenta à televisão, o filho enrijando músculos para o
basquete, a filha ausente em aulas e namoros. Todos em casa estariam
concordes - ele era o passado. Não requeria muito tempo nem atenções.

Para a esposa ainda tinha utilidade - devia ouvi-la apresentar as
reclamações do dia e atender aos pedidos para o dia seguinte. Ela dava-lhe
de comer e falava-lhe. De tudo. De todos. Suportava. Lá do escritório,
panejando vermelhidão na penumbra, a rosa acenava-lhe - "Tenha paciência,
espere a manhã seguinte!" Esperaria. Valia a pena esperar.

Pensando na rosa e na manhã seguinte, fazia por ignorar os preparos de uns
e as saídas de outros. Depois do jantar refugiava-se a reler cartas,
recortes, olhar as velhas fotos, testemunhos de sua antiga importância.

Ignorava a fuga dos amigos, até dos familiares. Cuidassem de si. Fizessem
pouco do pai e do poeta. Na próxima quinta-feira, como na anterior, alguém
lhe diria, em vermelho amoroso gritante e macio, que o entendia e o amava.

Fugissem dele. Também fugia deles. Antes de fechar-se no estúdio que o
conduzia ao passado, ouvia o relato da esposa e depunha na ponta da mesa o
dinheiro para as despesas do dia seguinte. Feira, tintureiro, duas lâmpadas
que se queimaram, presente para a prima que se casa, mensalidade da escola
de inglês para a menina... Saía sem ouví-la terminar. Da relação de
necessidades ela passaria a resmungar contra o silêncio teimoso do marido,
a ausência sempre maior dos filhos, os preços, a canseira, a idade, a vida.

Continuaria falando, lamentando, reclamando se ele não se levantasse para
fugir. Vendo nojo nos olhos do poeta ela retirava-se para a cozinha
distribuindo mentalmente as importâncias destinadas à carne, ao feijão, ao
tintureiro, à rosa que na quinta-feira enviaria ao desolado e crepuscular
marido poeta.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Metáfora - VI - Daniel

O tempo passou e fechou as feridas que ganhei nos outros caminhos, mais ou menos na época em que o pássador azul deixou de ser uma ameaça.
Após tanto tempo caminhando, eu e o coelho branco resolvemos que era hora de pararmos e começarmos a construir o nosso próprio mundo à beira do caminho.
O alicerce era um imenso tabuleiro de xadrez, símbolo da origem do nosso relacionamento, carregado de significados tão preciosos para nós dois.
Com suas cores opostas mas complementares, nos lembrava a natureza de nós mesmos: diferentes, mas ao mesmo tempo se completando.
Sobre esse alicerce erguemos nosso castelo formado por tudo aquilo que nos era mais caro: detalhes que nos identificavam como um casal e nos lembravam os muitos momentos mágicos que compartilhamos.
A memória fazia-se presente em cada direção que olhávamos tornando a experiência de simplesmente estar ali muito agradável, não apenas para nós, que compreendíamos e identificávamos cada símbolo com seu significado, mas também para nossos amigos, conhecidos e eventuais viajantes que paravam para admirar nosso lar.
Construção destinada a jamais se completar, porque viver nela significava evoluir, expandir, continuar a construir, num ciclo sem fim...

terça-feira, 29 de abril de 2008

Xadrez

Rosario Castelanos

Porque éramos amigos e, talvez,
para juntar outros interesses aos muitos que
nos obrigávamos, decidimos jogar jogos de inteligência.
Pusemos um tabuleiro frente a nós,
equitativo em peças,
em valores e em possibilidades de movimentos.
Aprendemos as regras, juramos respeitá-las,
e a partida teve início.
Eis-nos aqui, há um século sentados,
meditando encarniçadamente em como
dar a estocada última que aniquile
inapelavelmente e para sempre... o outro!

ps:

"Às vezes, um cachimbo é apenas um cachimbo...,
mas nem sempre o jogo de xadrez é apenas um jogo de xadrez..."

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Por estranho que pareça - Teotonio Simões

Por estranho que pareça,
quem não se governa, governa,
quem não tem a ambição de se deter,
detém,
quem não se conhece, ensina.
Por estranho que pareça.
Parece estranho
que o estranho seja tão conhecido
e o conhecido tão estranho.
E eles estão lá, brigando
para ver quem vai mandar.
Estranho: alguns olham e levam a sério.
E eles estão lá, mandando
para ver quem vai obedecer.
Estranho: alguns ouvem e obedecem.
E eles vão para lá, prometendo,
para ver quem vai cobrar.
Estranho: alguns esperam.
Alguns querem mandar.
Alguns esperam o mando.
Estranho: são alguns.
A maioria vai vivendo livremente.
Estranho: para a minoria a maioria parece minoria.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Traduzir-se - Ferreira Gullar

Traduzir-se

Uma parte de mim é todo mundo
Outra parte é ninguém, fundo sem fundo
Uma parte de mim é multidão
Outra parte estranheza e solidão
Uma parte de mim pesa, pondera
Outra parte delira
Uma parte de mim almoça e janta
Outra parte se espanta
Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente
Uma parte de mim é só vertigem
Outra parte linguagem
Traduzir uma parte na outra parte
Que é uma questão de vida e morte
Será arte?

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Saudade

Saudade.
Dor dilacerante e, ao mesmo tempo, doce.
Sim, a saudade é uma dor doce.
Desespera e, as vezes, parece confortar.
Sufoca.
Mas o que seriam das lembranças sem a saudade.
De que me serviriam as fotografias
as cartas...
meus pequenos tesouros
que de nada mais são que recordações de outros tempos
servindo para
provocar
invocar
intimar
a saudade?
Então te pergunto, minha cara,
que mais é a saudade que uma
brincadeira do Tempo?
O Tempo que nos mostra nossa finitude,
mas que é infinito,
tão infinito quanto só o Tempo pode ser,
resolve brincar com a nossa finitude
como distração
da sua monotonia infinita.
Ai ai
Quantos suspiros ele me provoca enquanto brinca!
Eu saudoso por essência e existência
vivo a tentar entender a saudade...
até que desisto e me entrego a senti-la
(e o que mais se pode fazer com os sentimentos?)
doloridamente doce
nessa existência com fim.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Sábios porcos-espinhos

Durante a era glacial, muitos animais morriam por causa do frio. Os porcos-espinhos, percebendo esta situação, resolveram se juntar em grupos, assim se agasalhavam e se protegiam mutuamente. Mas os espinhos de cada um feriam os companheiros mais próximos, justamente os que forneciam calor. E, por isso, tornavam a se afastar uns dos outros.

Voltaram a morrer congelados e precisavam fazer uma escolha: desapareciam da face da Terra ou aceitavam os espinhos do semelhante. Com sabedoria, decidiram voltar a ficar juntos. Aprenderam assim a conviver com as pequenas feridas que uma relação muito próxima podia causar, já que o mais importante era o calor do outro.

Sobreviveram!